Exigências burocráticas e uma cultura que privilegia a quantidade em vez da qualidade levam cientistas à exaustão – e à malandragem – para garantir bolsas de pesquisa.
O tcheco Ján Hoch tinha 16 anos em 1940, quando perdeu a família nas câmaras de gás de Auschwitz. Sem lenço e sem documento, alistou-se em um contingente de exilados do exército inglês, mudou de nome para Robert Maxwell e combateu na 2ª Guerra Mundial. Ao final do conflito, ganhou condecorações e cidadania britânica. Acabou destacado para uma base na Berlim ocupada.
O militar não sabia, mas sua temporada na capital alemã o tornaria um milionário – e mudaria a história da ciência. Lá ele conheceu a Springer, uma editora alemã fundada em 1842. Eles eram especialistas em publicar artigos científicos: os textos que todo pesquisador precisa escrever para divulgar seus experimentos, descobertas e resultados de pesquisa.
Investir nesse ramo em um continente destruído não é um jeito óbvio de ganhar dinheiro. Maxwell, porém, enxergou longe: percebeu que a ciência iria bombar no pós-guerra. Os governos, afinal, já tinham percebido que, quanto maior o avanço nos laboratórios, maior a vantagem no front (a bomba atômica, filhote da Teoria da Relatividade, que o diga). Então não faltaria dinheiro público para as pesquisas. Além disso, era óbvio que os cientistas britânicos precisariam cada vez mais de notícias sobre a ciência que estava sendo feita em outros países – a começar pela própria Alemanha, onde ele estava.
Maxwell acionou sua rede de contatos e em dois tempos se tornou distribuidor oficial de artigos científicos da Springer no Reino Unido e nos EUA. A sacada foi tão lucrativa que em 1951 ele já tinha capital e contatos para fundar sua própria editora, agora em território britânico – a Pergamon Press. Maxwell prosperou, criou um império midiático e passou décadas nas listas de homens mais ricos da Inglaterra.
Mas o grande legado do magnata não foi exatamente a Pergamon. Foi ter criado um modelo de negócios extremamente lucrativo. E que ainda dá um belo dinheiro: a editora Elsevier – que comprou a Pergamon em 1991 e hoje é a maior editora de literatura científica do planeta – lucrou US$ 1 bilhão sobre um faturamento de US$ 2,7 bilhões, margem de lucro de 36,7%, maior que o do Google (26,5%).
Só tem um detalhe: essa indústria pode ser péssima para a ciência. É o que vamos ver a seguir.
De Newton à Nature
Na ciência, não basta descobrir, é preciso contar aos outros o que você descobriu. Copérnico, Galileu e Newton, por exemplo, escreviam livros técnicos, relatando suas experiências e resultados. Com o tempo, a divulgação passou a acontecer menos por livros e mais por artigos científicos – peças curtas, publicadas em revistas e periódicos especializados.
As primeiras revistas científicas, lá no século 18, não tinham fins lucrativos. Mas com o aumento dos investimentos públicos nos laboratórios, a partir da década de 1950, as universidades passaram a ter muito mais pesquisadores. São todos funcionários com carteira assinada, que precisam mostrar serviço – e que recebem avaliações de desempenho.
Pois bem. Para fazer essas avaliações, a comunidade acadêmica adotou basicamente dois critérios: a quantidade de artigos científicos publicados em revistas – um suposto sinal de produtividade e dedicação – e o número de vezes em que esses artigos são citados em outros artigos – o que, em teoria, é uma evidência de que o trabalho foi relevante e influente.
Os cientistas não querem lucro, só divulgação. Então entregam o material de graça. Na outra ponta da equação, há as universidades, que não têm outra opção a não ser pagar o que as editoras pedem para ter acesso às pesquisas mais importantes (afinal, um pesquisador só consegue trabalhar se puder ler o trabalho de outros pesquisadores). Isso deu origem a um modelo de negócio sem igual: você, dono da editora de periódicos científicos, recebe conteúdo de graça e vende a um público disposto a pagar muito.
“Quando os cientistas passaram a ser avaliados por produtividade, eles tiveram de publicar mais”, diz Fernando Reinach, ex-biólogo da USP. Empresários como Maxwell farejaram o bom negócio – pegar de graça do governo [que financia as pesquisas] para vender de volta para o governo [que financia as universidades] – e mais do que isso: perceberam que era fácil incentivá-lo com um empurrãozinho.
O empurrãozinho, no caso, foi criar grifes da ciência: periódicos muito seletivos, que só publicam a nata das pesquisas. Sair em títulos como Cell, Nature ou Science dá visibilidade e é bom para a carreira dos cientistas. Outro estímulo para o lucro foi criar uma maré de revistas extremamente especializadas, que abarcavam todos os nichos da ciência – até os que ainda nem existiam.
“Quando um periódico fica famoso, ele cria um monopólio em sua área. Se há um periódico de um determinado campo [de pesquisa], todas as bibliotecas universitárias precisam ter uma assinatura”, explica Neal S. Young, chefe do setor de Hematologia do Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA. “Com isso, as editoras podem cobrar preços muito altos.” A própria Elsevier tem 2,7 mil títulos – entre eles Revascularização Cardiovascular e o Periódico Internacional de Adesão e Adesivos.
As bibliotecas, com orçamentos na casa dos milhões de dólares, se entupiram de revistas especializadas. Em 1988, Maxwell afirmou que, com a internet e o fim dos custos de impressão, as editoras científicas lucrariam mais ainda. Acertou.
“Na era digital, a figura da editora científica é ainda mais importante”, afirma Dante Cid, vice-presidente de relações acadêmicas da Elsevier no Brasil. “Ela inibe a disseminação de informações equivocadas e colabora com a distribuição da pesquisa de qualidade.”
De fato, os padrões de excelência da Elsevier e de outras editoras de peso continuam altos. Mas o sistema causa distorções. “Um Newton da vida, que passava a vida toda trabalhando e publicava pouco, não teria chance no século 21”, diz Fernando Reinach.
2,7 mil: É o número de revistas científicas de uma única editora, a Elsevier. São títulos ultraespecializados, como “Periódico Internacional de Adesão e Adesivos” e “Revista da Sociedade da Fertilidade do Oriente Médio”. Marcio Moreno/Superinteressante
Masturbação acadêmica
Hoje, para um cientista brasileiro da área de Farmácia receber a classificação máxima (1A) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, o CNPq, ele precisa ter publicado 70 artigos científicos nos últimos dez anos. Ou seja: ele é obrigado a tirar um avanço científico do chapéu a cada dois meses.
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Como a classificação de um cientista no CNPq define quanto dinheiro ele pode receber para suas pesquisas, surge a mentalidade do “quanto mais, melhor”. A quantidade bruta de artigos passa a valer mais do que a criatividade e a originalidade de cada um. Os pesquisadores, sob pressão, se preocupam mais em bater metas do que em produzir boa ciência. “É aflitivo”, resume Kenneth Camargo, professor de saúde coletiva da UERJ e editor de revistas científicas. “Para conseguir promoções na carreira e recursos de pesquisa, você é induzido a publicar o tempo todo. E isso gera expedientes eticamente discutíveis.”
Um desses expedientes é o “pedágio”: você, cientista, exige ser creditado como autor em alguma pesquisa que tenha usado equipamento do seu laboratório – mesmo que você nem tenha participado do estudo. Outro é a “ciência salame”: fatiar uma pesquisa longa, que deveria ser apresentada de uma vez só, em vários pequenos artigos com conclusões parciais – o que aumenta o volume de produção e a classificação acadêmica do autor.
Uma consequência do salame é que o impacto científico de cada artigo diminui. E aí surge um problema: não basta publicar muito. Suas publicações também precisam servir de referência para pesquisas futuras no mesmo assunto. Se seu trabalho é fragmentado e inconclusivo, outros cientistas não terão motivo para consultá-lo.
É fácil verificar essa infestação de artigos pouco relevantes nos números. Um estudo feito por Sidney Redner, da Universidade de Boston, revelou que, dos 353 mil estudos publicados entre 1893 e 2003 na Physical Review, apenas 2 mil (0,56%) tiveram mais de cem citações. Oitenta e quatro mil (24%) foram citados só uma vez.
O número de citações, porém, também adiciona pontos de desempenho. Então não vale a pena fazer um monte de salames, certo? Não: os pesquisadores criaram artifícios para obter citações do nada. É o caso dos “clubes de citações”. Você força a barra no seu artigo para citar trabalhos dos colegas. Os colegas sabem que você faz isso por eles, e também dão um jeito de citar seus artigos pouco relevantes. Pronto, está formado o clube. Também há as autocitações: você chega e cita a si próprio. Masturbação acadêmica.
Pagou, passou
Se nada da lista acima der certo, ainda há as revistas científicas do tipo “pagou, passou.” Esse nicho de mercado surgiu na última década, com intenções boas: as gigantes, como Nature e Science, ofereceram aos pesquisadores a opção de pagar pelos custos de publicação de seus artigos. Assim, o conteúdo fica disponível gratuitamente na internet, sem paywall ou assinatura – colaborando com a democratização da ciência.
Era só uma transferência do custo de publicação: parar de cobrar do leitor e passar a cobrar do autor, sem diminuir as exigências de qualidade. Mas é claro que a fronteira entre pagar para liberar o acesso à pesquisa e pagar para conseguir publicar um artigo péssimo é tênue, para dizer o mínimo. Tanto que surgiu um mercado paralelo de revistas picaretas, que topam qualquer negócio.
Jeffrey Beall, bibliotecário da Universidade do Colorado, estima que entre 5% e 10% dos artigos open access tenham sido publicados por periódicos que nem leem o material enviado por pesquisadores desesperados – e cobram centenas de dólares por essa conveniente vista grossa.
70 artigos científicos em 10 anos: É o que um cientista brasileiro da área de Farmácia precisa publicar para chegar ao topo da carreira. Nem um Isaac Newton teria chance nesse modelo. A solução? “Fatiar” uma única descoberta em vários artigos. Diluindo, rende mais. Marcio Moreno/Superinteressante
Em 2014, para fazer um teste bem-humorado, o cientista da informação australiano Peter Vamplew enviou a uma dessas publicações caça-níqueis um artigo falso intitulado Get Me Off Your Fucking Mailing List (em bom português, “me tire da sua p**** de lista de e-mails”). A coisa consistia, dos gráficos à conclusão, no pedido do título repetido 870 vezes.
Algumas semanas depois, recebeu a resposta da revista – que, apesar do site de aparência amadora, leva o pomposo nome de Periódico Internacional de Tecnologia Computacional Avançada: os editores pediram algumas “referências a mais”. De resto, tudo ótimo: Me tire da sua p**** de lista de e-mails foi aprovado para publicação.
Esse arsenal de truques deixa claro: publicar com qualidade e em quantidade ao mesmo tempo é impossível. “A boa ciência, que é de fato inovadora, sempre foi rara”, afirma Kenneth Camargo. “Muita gente trabalha, mas as grandes contribuições são agulhas no palheiro. Com essa maré de artigos científicos, você multiplica os palheiros, mas não as agulhas.”
Por outro lado, avaliar ciência sem usar números não é tarefa fácil. Mesmo o CNPq tem consciência de que quantidade não é sinônimo de qualidade. Acontece que não há uma maneira objetiva de medir criatividade e inovação. No final do dia, as bolsas ainda precisam ser distribuídas e os professores ainda precisam ser contratados de acordo com seus méritos. As universidades concordaram que citações e artigos são o melhor jeito de fazer isso – e as editoras pularam dentro. Mesmo assim, não falta quem nade contra essa corrente.
Robin Hood na pós
Em junho deste ano, aos 28 anos de idade, a pesquisadora Alexandra Elbakyan, nascida no Cazaquistão, foi condenada pela Justiça americana a pagar US$ 15 milhões à Elsevier. A ativista começou uma carreira promissora na neurociência, mas não tinha verba para consultar as dezenas de artigos científicos que precisava para sua pós-graduação. Se uma universidade não assina um determinado periódico, o pesquisador precisa desembolsar em média US$ 30 para acessar um único artigo por apenas 48 horas. Salgado.
Dante Cid, da Elsevier, justificou à SUPER que os preços altos são reflexo da enorme operação da editora – que emprega 7,5 mil pessoas em 12 países e publica 16% de todas as descobertas do mundo.
Seja como for, Alexandra Elbakyan estava em busca de uma solução para o bolso dos cientistas. Descobriu, então, que vários deles usavam fóruns na internet para compartilhar senhas e assinaturas de periódicos. Inspirada pelo método, em 2011 criou o Sci-Hub: um banco de artigos pirateados que contém 64,5 milhões de arquivos – tudo alimentado por senhas fornecidas anonimamente.
“O Sci-Hub é para a ciência hoje o que o Napster foi nos anos 1990”, avalia Marco Mello, professor de ecologia da UFMG. “Se ele não tivesse aparecido, a indústria da música não teria se reinventado. Essas iniciativas estão forçando o sistema a se repensar.”
Elbakyan se exilou e está fora do alcance da Justiça americana, mas o Sci-Hub continua no ar, hospedado em domínios exóticos como o das Ilhas Cocos (.cc). De que a iniciativa é ilegal, não há dúvida. Mas sua popularidade silenciosa entre acadêmicos é um sintoma da frustração com o status quo da publicação científica. Dá para entender por quê.
Reproduzido do original Super Interessante:
Como a indústria dos artigos científicos trava o avanço da ciência | Super (abril.com.br)
Fantástico e pura verdade